Morto há uma semana, aos 70 anos, depois de sofrer uma queda em Roma, o magistrado Régis Bonvicino tornou-se um dos principais nomes da poesia brasileira contemporânea. Entre a lírica e o direito, viveu intensamente de forma multidimensional – na vida, na magistratura e, principalmente, como uma potente voz na nossa literatura como autor, tradutor, editor e crítico. Pode-se dizer que a singularidade de sua trajetória reside na tessitura entre palavra e lei, entre a criatividade poética e o rigor jurídico, campos que, à primeira vista, podem parecer antagônicos, mas que em sua história se entrelaçam de maneira ímpar e produtiva.
Bonvicino nasceu em São Paulo, em 1955, e ainda jovem foi capturado pelo universo das letras. Sua produção poética, iniciada nos anos 1970, atravessa várias fases e configurações, sempre marcada pelo experimentalismo, pela busca de novas formas de expressão e pelo diálogo com a tradição e a contemporaneidade. Graduou-se em Direito em 1978, pela Universidade de São Paulo e tornou-se magistrado por concurso em 1990. Atuou nas comarcas de Casa Branca, Jundiaí, Porangaba, Franco da Rocha e Capital. Em 2019 tornou-se juiz substituto de 2ª Instância; e foi nomeado desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, em junho de 2024. Na ocasião falou do papel do magistrado em um mundo tão desafiador. “O dever que assumi há 34 anos, quando tomei posse no cargo de magistrado, e que nesse marco da carreira reafirmo, é o de fazer justiça, agora em um mundo mais complexo.”
É exatamente esse mundo mais complexo o cenário e contexto em que o talento do poeta Régis Bonvicino espelhou como poucas vozes no nosso panorama literário.
A poética
A poesia de Bonvicino é caracterizada pela intensidade imagética, pela fragmentação e pelo questionamento dos limites da linguagem. Seus versos se organizam em campos visuais e sonoros, explorando recursos gráficos, cortes abruptos e silêncios. O poeta frequentemente subverte expectativas, desestrutura sintaxes e cria atmosferas de estranhamento e reflexão. Sua obra não se limita ao lirismo confessional ou à poesia de protesto, mas procura tensionar o próprio fazer poético, interrogando o papel da poesia e do poema no mundo contemporâneo.
Bonvicino publicou livros fundamentais para a poesia brasileira recente, como “Sósia da cópia” (1978), “Ossos de borboleta” (1982), “33 poemas” (1990, pelo qual ganhou o Jabuti)), “Página órfã” (1999), “Estado crítico” (2000), “Céu-eclipse” (2009), “Más companhias” (2017), e “A nova utopia” (2023) entre outros. Também organizou antologias e traduziu poetas estrangeiros, sendo um dos principais interlocutores entre a poesia brasileira e a internacional, especialmente com a tradição anglo-americana.
São recorrentes em sua obra os temas do deslocamento, da alteridade, do choque com o cotidiano urbano, da crítica à massificação e ao esvaziamento das experiências. O poeta lança mão de elementos da cultura pop, da política e do ambiente urbano para construir uma poesia que dialoga tanto com o cenário local quanto com o global. Sua linguagem é, ao mesmo tempo, direta e elíptica, marcada por cortes e colagens que sugerem a fragmentação do sujeito e do mundo.
A poesia de Bonvicino ultrapassa, assim, a tradição do modernismo brasileiro ao incorporar, de maneira radical, o experimentalismo do pós-modernismo e a abertura ao diálogo intercultural. Ao buscar o novo sem abandonar a crítica ao presente, sua poesia se firma como expressão da inquietação e do desejo de transformação.
Ele não é apenas um poeta de grande originalidade formal; é também um agente ativo de diálogo entre diferentes tradições poéticas. Suas traduções e antologias abriram espaço para a circulação de poetas estrangeiros no Brasil e para a recepção de sua própria obra em outros idiomas. Entre os autores que traduziu ou divulgou estão nomes como Charles Bernstein, Douglas Messerli e Paul Hoover, ligando a cena brasileira à vanguarda da poesia norte-americana. Como editor publicou Paulo Leminski, Waly Salomão, José Paulo Paes e os grandes concretos Haroldo de Campos e Décio Pignatari, entre outros.
Seu trabalho editorial e de tradução evidencia uma visão cosmopolita da literatura, na qual a poesia não é apenas documento de sua época ou região, mas um laboratório constante de invenção e troca. Para Bonvicino, traduzir é também escrever, é desafiar e ser desafiado por outras linguagens, outras culturas, outros olhares.
Sobre o fazer poético dele, escreveu o crítico Alcir Pécora: “Desde Página Órfã, radicalizada neste Estado Crítico, não vejo poesia que faça crítica mais implacável da poesia e, ao mesmo tempo, melhor se reafirme como poesia, do que a de Régis Bonvicino. E é assim não porque esses livros falem de poesia ou teorizem sobre a crise da poesia, mas porque se movem taticamente em torno de seus impasses, implantando-se num terreno no qual os versos ocupam as vias mais hostis da metrópole”.
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