O Tribunal Regional Federal da 3ª Região considerou que o crime de ocultação de cadáver tem natureza permanente e, por isso, não pode ser alcançado pela Lei da Anistia (Lei 6.683/1979). Por conta desse entendimento, o colegiado do TRF 3 decidiu que o ex-médico legista José Manella Netto deve continuar respondendo à denúncia do Ministério Público Federal (MPF) por ocultação de cadáver, no Processo 5002620-24.2021.4.03.6181.
Manella Netto foi integrante do Instituto Médico Legal de São Paulo durante a ditadura militar e é acusado de forjar o laudo necroscópico do militante político Carlos Roberto Zanirato, de forma a omitir a informação de que Zanirato foi submetido a intensas sessões de tortura, e a sua real identidade, o que contribuiu para a ocultação do cadáver da vítima, cujos restos mortais nunca foram encontrados.
Em denúncia contra o ex-legista sobre o episódio, o Ministério Público Federal afirmou que permanece, “até o presente momento, a violação do bem jurídico (sentimento de respeito aos mortos) provocada pela prática criminosa de ocultação de cadáver”. Por isso, segundo o MPF, “a consumação da violação encontra-se prolongada no tempo, projetando-se até a atualidade”.
Com base neste entendimento, o MPF avaliou que o crime não pode ser alcançado pelos efeitos da Lei da Anistia, já que a conduta criminosa se estende para além das datas de seu alcance e continua até mesmo sob a égide da Constituição de 1988 — tese que foi acolhida pela 4ª Seção do TRF3 durante julgamento realizado no último dia 21 de fevereiro.
Constitucionalidade
Os desembargadores entenderam que o processo contra o ex-médico legista não viola a decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, que considerou constitucional a Lei da Anistia. Isto porque o crime de ocultação de cadáver só prescreve oito anos após a localização do corpo, o que não ocorreu até hoje.
Os magistrados ressaltaram que nem mesmo a retificação do assento de óbito da vítima consegue fazer cessar a permanência do crime de ocultação. Com a decisão, o TRF 3 diferenciou a ocultação de cadáver da falsificação do laudo necroscópico. Portanto, no processo em questão, para o tribunal o crime de falsificação do laudo prescreveu e está protegido pela anistia. Mas o de ocultação do corpo de Zanirato segue ativo, o que permite a responsabilização criminal do médico legista.
Atualmente, tramita no STF uma ação cujo julgamento vai definir se crimes cometidos durante a ditadura e que ainda perduram no tempo podem ser punidos. O ministro Flávio Dino, relator do caso no Supremo, defende que a anistia só extinguiu a punibilidade de crimes praticados até 1979, mas não pode cobrir delitos que continuam acontecendo.
Entenda o caso
Zanirato faleceu em 29 de junho de 1969. Ele era soldado do Exército e abandonou o posto para integrar a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Após ter sido capturado pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury, em fevereiro de 1969, foi o primeiro militante sob custódia do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops/SP) a desaparecer.
Conforme depoimentos de pessoas que o viram na época, ele foi preso e sofreu torturas durante seis dias seguidos. Em junho, quando se dirigia até local onde teria programado de se encontrar com outro membro da VPR, acabou sendo lançado contra um ônibus. Não houve perícia sobre o atropelamento nem fotos da ocorrência. Também não foi instaurado um inquérito policial, como era obrigatório em casos desse tipo. O laudo de Manella Netto, assinado em conjunto com o médico já falecido Orlando Brandão, sustenta a versão oficial de que o militante cometera suicídio ao saltar na frente do veículo.
De acordo com a denúncia do MPF, o documento do IML ocultou lesões que não poderiam ter sido causadas pelo impacto, mas por agressões anteriores. Além disso, os autos da ação ressaltam que, mesmo ainda estando com as algemas partidas nos punhos e com o nome completo constando na requisição de exame, Zanirato foi considerado um “desconhecido” no relatório do IML e posteriormente enterrado como indigente, assim como diversos outros opositores do regime militar ao longo da ditadura. “As marcas de tortura eram o motivo pelo qual os militares não queriam que o corpo fosse visto pelos familiares”, informou o Ministério Público.
O MPF ressaltou que não cabe prescrição nem anistia à conduta de Manella Netto, uma vez que o crime foi cometido em um contexto de “ataque sistemático e generalizado do Estado brasileiro contra a população”. E mesmo que a prescrição fosse cabível nesse caso, a contagem do prazo só passaria a correr a partir do momento em que se encerrasse a ocultação do cadáver — um crime que permanece enquanto o corpo de Zanirato não for localizado.